sábado, 31 de dezembro de 2011

Uma reflexão sobre o Ano Novo


             

            O Ano Novo é sempre um período que convida naturalmente à reflexão; isso não acontece por acaso: o fim de um ano nos coloca diante de todos os processos cíclicos que dirigem o universo e nossa própria vida. A natureza funciona baseada em ciclos, em seqüências circulares de eventos encadeados que conduzem infinitamente à repetição, ao ponto de partida: a semente germina, a planta desenvolve-se e produz maravilhosos frutos carregados de sementes. A água cai das nuvens na forma de chuva; infiltra-se no solo, alimenta as nascentes dos rios; viaja centenas de quilômetros até desaguar no mar, então evapora e retorna às nuvens, incessantemente.
            E, finalmente, temos os ciclos temporais, que são a própria essência disso que chamamos tempo: a rotação terrestre que produz a alternância de dias e noites; os ciclos lunares, tão importantes para todos os organismos vivos, e o grande ciclo que resume a própria vida: o ano, a magnífica volta que nosso planeta descreve ao redor de nossa estrela solar. Esse balé cósmico de aproximação e afastamento do Sol produz as quatro estações e sintetiza as dinâmicas fundamentais da vida em nosso planeta.
            Iniciar um novo ciclo é uma experiência mágica, é a própria celebração da vida. Os povos antigos, conectados que estavam à natureza, celebravam a magia da alternância dos ciclos com grandes rituais sagrados. O rito tem aqui a função de preparar o espírito, de reunir energias psíquicas para um novo início nessa espiral infinita. Essa é ainda a essência de nossas celebrações, infelizmente tão embrutecidas pela sociedade de consumo: é a comemoração, a expressão da felicidade por chegar ao fim de um ciclo, e a preparação espiritual para um novo amanhecer. Há duas esferas distintas na celebração do ciclo: uma esfera coletiva, onde reunimos as pessoas que nos são queridas; aqui nós devemos comemorar e agradecer pelo apoio mútuo na caminhada; é também o movimento de pedir e receber o perdão pelas faltas cometidas (queimar as dívidas, como dizem alguns). Mas o mais importante é celebrar um pacto sagrado de colaboração para o novo ciclo que se inicia; esse é um ritual de sabedoria e humildade em que reconhecemos nossa verdadeira posição diante do universo: sozinhos somos muito pequenos, mas juntos somos uma extraordinária força transformadora !!!
            A outra esfera é interior, junto à nossa coletividade interna; pois é assim que somos concebidos nas culturas xamânicas: uma soma de forças naturais e poderes espirituais que cooperam entre si para se desenvolverem. Espiritualmente um ciclo significa tarefas a cumprir, objetivos a alcançar. Daí essa tendência inata de fazer balanços no final de ano: é o momento de avaliar como estamos caminhando. Isso era mais fácil em sociedades que tinham valores espirituais definidos; hoje, em que todos os valores são relativos, as crises de identidade são uma constante na vida das pessoas. Não há melhor solução para isso do que voltar-se para dentro. O xamã afasta-se de seu mundo para ouvir a voz dos espíritos; busca o silêncio e a solidão para colocar-se em contato com seu deus interior. Isso explica o poderoso impulso que muitas pessoas sentem nessa época de afastarem-se e ficar em retiro: o fim do ciclo abre uma poderosa janela para contato com o self, com o si mesmo. É o momento de esclarecer objetivos. Sempre devemos ter metas definidas para o futuro; somente assim nossa psique tem energia, quando há um foco para concentrar esforços; quando não sei para onde quero ir não vou a lugar algum...
            No ritual de ouvir o íntimo estamos pedindo a Deus que ilumine nosso caminho. Feliz Ano Novo, irmão caminhante !

domingo, 11 de setembro de 2011

Pérolas de "Comer, Rezar e Amar" (Elizabeth Gilbert)

          
           Eu acredito que há dois ingredientes que explicam o enorme sucesso do livro de Elizabeth Gilbert: o primeiro deles é que a autora vive um problema tremendamente comum nos tempos de hoje, talvez uma das marcas registradas de nosso tempo: o divórcio; muito mais que a separação em si, Elizabeth foi muito feliz em retratar tudo que está envolvido no processo, desde o doloroso processo de amadurecer a decisão de separar, passando pela separação em si e na enorme dificuldade de reestruturar a própria vida depois; só isso seria suficiente para garantir o sucesso do livro. Mas há ainda a questão do vazio existencial e da busca espiritual, outra marca registrada de nossos tempos; somos uma sociedade em crise com nossa religiosidade. Mais ainda: religiosidade é cada vez mais uma questão pessoal, a busca de nossa ligação particular com Deus. Ao descrever sua própria busca a autora é deliciosa: longe dos estereótipos do guru que passa receitas prontas de como chegar ao divino, ela descreve de forma divertida e bem-humorada os altos e baixos de seu atrapalhado caminho até Deus. Eu destaquei aqui alguns pontos desse universo espiritual descritos no livro:

            No início de sua busca, em plena crise, ela descreve uma oração de enorme simplicidade que utiliza ao “conversar” com Deus: Por favor, diga-me o que fazer.
            Em sua busca ela faz contato com a Yoga e os exercícios de meditação; ela é ensinada a meditar no seguinte mantra sânscrito: OM NAMAH SHIVAYA (Eu saúdo a divindade que reside em mim).
            Em sua primeira viagem à Bali, ao pedir a um curandeiro ajuda para experimentar Deus, ele lhe mostra um quadro onde uma figura andrógina, de pé, tem quatro pernas, e no lugar da cabeça há flores e folhagens. Ele lhe diz: Para encontrar o equilíbrio que você busca, isto é o que você deve se tornar: você deve ter seus pés apoiados firmemente na terra, como se tivesse quatro pernas. Dessa forma você estará no mundo. Mas você deve parar de olhar o mundo com sua cabeça; deve fazê-lo com seu coração; dessa maneira irá conhecer Deus.
            Refletindo sobre as palavras do curandeiro ela vê relação com o que os gregos chamam kalos kai agathos: o singular equilíbrio entre o bem e a beleza, o estado de liberdade para o exercício do prazer e da devoção.
            Já na Itália, reflexão sobre um trecho do Bhagavad Gita: é melhor viver seu próprio destino imperfeito do que imitar alguém que viveu com perfeição.
            Elizabeth está na Índia, realizando um retiro num ashram; ao descrever o conceito budista da mente (os pensamentos como um macaquinho pulando freneticamente de um galho para outro) ela menciona o conceito budista de Deus: uma presença; porque ele está presente, está aqui agora. Apenas no presente ele pode ser encontrado, agora é o único tempo possível.
            Ainda no ashram, refletindo sobre sua tendência a ser sempre ansiosa, ela cita uma frase da avó de um amigo: Não há problema no mundo tão sério que não possa ser curado com um banho quente, um copo de whisk e um livro de orações. Moral da história: deixe para se preocupar quando as coisas realmente forem sérias.
            Elizabeth está aprendendo a controlar seus pensamentos; o primeiro passo é observá-los durante todo o dia; ele aprende um exercício em que visualiza sua mente como uma ilha; todo acesso à ilha é feito através de um porto. O objetivo de sua vigília é não permitir que pensamentos negativos desembarquem ali.
            Um colega do ashram, o neozelandês W.J. O´Connell, deixou para ela um texto intitulado Intruções para a Liberdade:
  • As metáforas da vida são instruções de Deus
  • Você apenas subiu no telhado; não há nada entre você e o Infinito; basta ir.
  • O dia está terminando. É tempo de algo que foi bonito transformar-se em algo belo; basta ir.
  • Seu desejo de vir foi uma prece; você estar aqui uma resposta de Deus. Veja as estrelas surgirem no exterior e no interior.
  • Com todo seu coração, peça uma graça, e siga.
  • Com todo seu coração, perdoe ele, perdoe a si mesmo, e siga.
  • Veja o calor do dia tornar-se o frescor da noite, e siga.
  • Quando o karma de um relacionamento se realiza, apenas o amor permanece. É seguro.Siga.
  • Quando o passado passar por você, deixe-o ir. Em seguida desça e comece o resto de sua vida com grande alegria.

Ditado balinense: bhuta ia, dewa ia (o homem é um demônio, o homen é um deus)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A Arte de Meditar (Matthieu Ricard) - Sinopse


O objetivo da meditação é transformar-se interiormente, treinando a mente; a modificação de nossa percepção das coisas transforma a qualidade de nossa vida. 
Também podemos definir meditação como o treinamento para desenvolver qualidades fundamentais, como o amor altruísta; não é um exercício egoísta; nossa motivação para a transformação interior é ter capacidade de ajudar a transformar o mundo. Meditação em sânscrito é BHAVANA (cultivar); em tibetano GOM (familiarizar-se).
Estudos científicos realizados em Princeton e Harvard demonstram que a meditação influencia na neuroplasticidade cerebral, produzindo reorganizações estruturais e funcionais no cérebro. Períodos de 8 semanas de meditação (30 minutos diários) reforçam o sistema imunológico, diminuem a pressão arterial, melhoram a atenção e são eficazes em tratamentos de depressão e ansiedade.
O foco da meditação é permitir a percepção diferenciada; uma vida repleta não é feita de uma sucessão de sensações agradáveis, mas de uma transformação na maneira pela qual nós compreendemos e atravessamos os acasos da existência. O treinamento da mente permite não somente combater as toxinas mentais, como o ódio e a obsessão que envenenam literalmente nossa existência, mas também adquirir melhor conhecimento sobre como a mente funciona e uma percepção mais justa da realidade.
A mente não é uma entidade, mas uma onda dinâmica de experiências, uma sucessão de instantes da consciência. O propósito da meditação é observar os sutis mecanismos do funcionamento de nossa mente e agir sobre eles. Para isso é necessário desenvolver o poder de introspecção, tornar a atenção estável e clara. É o “controle que liberta”: ser livre é ser dono de si mesmo

Como meditar
Há três passos básicos: atitude analítica, contemplação e transformação interior; e quatro requisitos básicos:
  • Motivação: o firme desejo de despertar (“Que o precioso Pensamento do Despertar nasça em mim, se não o concebi. Quando tiver nascido, que jamais decline, mas cresça sempre.” – Votos de Bodhisattva)
  • Lugar propício
  • Postura apropriada: Lótus (postura do diamante, ou Vajrasana) ou Meio Lótus (postura feliz, ou Sukhasana)
  • Regularidade

O autor propõe quatro temas de reflexão para reforçar nossa determinação em meditar:
  1. O valor da vida humana.
  2. Sua fragilidade e a natureza transitória de todas as coisas.
  3. A distinção entre os atos benéficos e os nocivos.
  4. A insatisfação inerente a um grande número de situações de nossa existência.

            Seqüência de treinamento da percepção:
  1. O mundo que nos cerca
  2. Nossas sensações
  3. O encadeamento de nossos pensamentos
  4. A consciência onipresente obscurecida por nossas cogitações

Meditação para desenvolver a Consciência Plena: observemos o que se apresenta à nossa consciência, sem lhe impor o que quer que seja, sem nos deixar atrair ou repelir. Contemplemos o que está presente diante de nós, uma flor, por exemplo, escutemos atentamente os barulhos próximos ou distantes, aspiremos os perfumes e os odores, sintamos a textura daquilo que tocamos, gravemos nossas diversas sensações, percebendo claramente o que as distingue. Estejamos inteiramente presentes ao que fazemos, seja quando estivermos caminhando, assentados, escrevendo, lavando a louça ou tomando uma xícara de chá. Não há mais tarefas agradáveis ou desagradáveis, pois a consciência plena não depende do que estamos fazendo, mas da maneira como fazemos, a saber com uma presença de espírito clara e tranqüila, atenta e maravilhada com a qualidade do momento presente, evitando acrescentar à realidade nossas construções mentais.

O Caminhar Atento: “Caminhar pelos simples prazer de caminhar, segura e livremente, sem se apressar. Estamos presentes a cada passo que damos. Se quisermos falar, paramos de caminhar e damos toda nossa atenção à pessoa que está diante de nós, ao fato de falar e escutar... Paremos, olhemos à nossa volta e vejamos como a vida é bela: as árvores, as nuvens brancas e a infinidade do céu. Escute os pássaros, sinta a leveza da brisa. Caminhemos como seres livres e sintamos nossos passos se tornarem leves à medida que caminhamos. Apreciemos cada passo que dermos”. (Thich Nhat Hanh)

Há dois tipos de meditação:
  • Calma mental (Shamatha): concentração no objeto; ex.: respiração
  • Visão penetrante (Vipashyna): análise contemplativa.

            Shamatha tem três etapas:
  • Manaskara (atenção no objeto)
  • Smiriti (manter a atenção no objeto)
  • Samprajanna (tornar-se consciente das características do objeto)

            Há ainda a “Concentração Sem Objeto”, um estado de perfeita simplicidade, sem nenhuma construção mental. Volte-se para o interior e simplesmente “conheça”:
            No inicio, nada vem.
            No meio, nada resta.
            No fim, nada parte.      (Milarepa)

            Para o budismo todas as coisas são interdependentes; tudo é relação, nada existe em si e por si. É a chamada “vacuidade da existência própria”. Há uma meditação para a compreensão do conceito de que as coisas, a despeito de sua aparência tangível, são desprovidas de existência última: imaginar a totalidade da rosa e ir gradativamente penetrando em sua estrutura, vendo apenas uma pétala, etc, recuando até chegar a ser um átomo da rosa; onde está a rosa ?
            O autor sugere ainda finalizar os exercícios com uma “dedicação de frutos”, um voto que canalize energias: “que a energia positiva nascida dessa meditação contribua para aliviar o sofrimento dos seres”.